Monday 2 April 2012

Criancinhas

Criancinhas 
A criancinha quer Playstation. A gente dá. 
A criancinha quer estrangular o gato. A gente deixa. 
A criancinha berra porque não quer comer a sopa. A gente elimina-a da ementa e acaba tudo em 
festim de chocolate.  
A criancinha quer bife e batatas fritas. Hambúrgueres muitos. Pizzas, umas tantas. Coca-Colas, às 
litradas. A gente olha para o lado e ela incha. 
A criancinha quer camisola adidas e ténis nike. A gente dá porque a criancinha tem tanto direito 
como os colegas da escola e é perigoso ser diferente.  
A criancinha quer ficar a ver televisão até tarde. A gente senta-a ao nosso lado no sofá e passa-lhe 
o comando. 
A criancinha desata num berreiro no restaurante. A gente faz de conta e o berreiro continua. 
Entretanto, a criancinha cresce. Faz-se projecto de homem ou mulher.  
Desperta. 
É então que a criancinha, já mais crescida, começa a pedir mesada, semanada, diária. E gasta 
metade do orçamento familiar em saídas, roupa da moda, jantares e bares.  
A criancinha já estuda. Às vezes passa de ano, outras nem por isso. Mas não se pode pressioná-la 
porque ela já tem uma vida  stressante, de convívio em convívio e de noitada em noitada. 
A criancinha cresce a ver Morangos com Açúcar, cheia de pinta e tal, e torna-se mais exigente com 
os papás. Agora, já não lhe basta que eles estejam por perto. Convém que se comecem a chegar à 
frente na mota, no popó e numas férias à maneira.  
A DEVIDA COMÉDIA                                                                                                  
A criancinha, entregue aos seus desejos e sem referências, inicia o processo de independência 
meramente informal. A rebeldia é de trazer por casa. Responde torto aos papás, põe a avó em 
sentido, suja e não lava, come e não limpa, desarruma e não arruma, as tarefas domésticas são 
«uma seca».  
Um dia, na escola, o professor dá-lhe um berro, tenta em cinco minutos pôr nos eixos a criancinha 
que os papás abandonaram  à sua sorte, mimo e umbiguismo. A criancinha, já crescidinha, fica 
traumatizada. Sente-se vítima de violência verbal e etc e tal.  
Em casa, faz queixinhas, lamenta-se, chora. Os papás, arrepiados com a violência sobre as 
criancinhas de que a televisão fala e na dúvida entre a conta de um eventual psiquiatra e o derreter 
do ordenado em folias de hipermercado, correm para a escola e espetam duas bofetadas bem 
dadas no professor «que não tem nada que se armar em paizinho, pois quem sabe do meu filho 
sou eu».  
A criancinha cresce. Cresce e cresce. Aos 30 anos, ainda será criancinha, continuará a viver na 
casa dos papás, a levar a gorda fatia do salário deles. Provavelmente, não terá um emprego. «Mas 
ao menos não anda para aí a fazer porcarias».  
Não é este um fiel retrato da realidade dos bairros sociais, das escolas em zonas problemáticas, 
das famílias no fio da navalha?  
Pois não, bem sei.  Estou apenas a antecipar-me. Um dia destes, vão ser os paizinhos a ir parar ao 
hospital com um pontapé e um  murro das criancinhas no olho esquerdo. E então teremos muitos 
congressos e debates para nos entretermos.  


      Artigo publicado na revista VISÂO online 

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