Tuesday, 24 March 2009

O atestado médico por José Ricardo Costa

Leiam este texto escrito por um professor de Filosofia que escreve semanalmente para o jornal O Torrejano.

Tudo o que ele diz é tristemente verdadeiro.

Imagine o meu caro que é professor, que é dia de exame do 12º ano e vaiter defazer uma vigilância. Continue a imaginar. O despertador avariou durante anoite. Ou ficapreso no elevador. Ou o seu filho, já à porta do infantário, vomitou oquente, pastoso, húmido e fétido pequeno-almoço em cima da sua imaculadacamisa.Teve, portanto, de faltar à vigilância. Tem falta.Ora esta coisa de um professor ficar com faltas injustificadas écomplicada, por isso convém justificá-la. A questão agora é: comojustificá-la?Passemos então à parte divertida. A única justificação para o facto deficar preso no elevador, do despertador avariar ou de não poder irpara uma sala do exame com a camisa vomitada, ababalhada emalcheirosa, é um atestado médico.Qualquer pessoa com um pouco de bom senso percebe que quem precisa aqui doatestado médico será o despertador ou o elevador. Mas não. Só umadoença poderá justificar sua ausência na sala do exame. Vai aomédico. E, a partir deste momento, a situação deixa de ser divertidapara passar a ser hilariante.Chega-se ao médico com o ar mais saudável deste mundo. Enfim, com o sorrisodeJorge Gabriel misturado com o ar rosado do Gabriel Alves e a felicidade dopadreMelícias. A partir deste momento mágico, gera-se um fenómeno que só pode serexplicado através de noções básicas da psicopatologia da vidaquotidiana. Os mesmos que explicam uma hipnose colectiva emFelgueiras, o holocausto nazi ou o sucesso da TVI.O professor sabe que não está doente. O médico sabe que ele não está doente.Opresidente do executivo sabe que ele não está doente. O directorregional sabe que ele não está doente. O Ministério da Educação sabeque ele não está doente.O próprio legislador, que manda a um professor que fica preso noelevador apresentar um atestado médico, também sabe que o professornão está doente.Ora, num país em que isto acontece, para além do despertador que nãotoca, do elevador parado e da camisa vomitada, é o próprio país queestá doente.Um país assim, onde a mentira é legislada, só pode mesmo ser um país doente.Vamos lá ver, a mentira em si não é patológica. Até pode ser racional,útil e eficaz em certas ocasiões. O que já será patológico é o desejoque temos de sermos enganados ou a capacidade para fingirmos que amentira é verdade.
Lá nesse aspecto somos um bom exemplo do que dizia Goebbels: umamentira várias vezes repetida transforma-se numa verdade. JáAristóteles percebia uma coisa muito engraçada: quando vamos aoteatro, vamos com o desejo e uma predisposição para sermos enganados.Mas isso é normal. Sabemos bem, depois de termos chorado baba e ranhoa ver o 'ET', que este é um boneco e que temos de poupar a baba e oranho para outras ocasiões. O problema é que em Portugal a ficção seconfunde com a realidade. Portugal é ele próprio uma produçãofictícia, provavelmente mesmo desde D.Afonso Henriques, que Deus meperdoe.A começar pela política. Os nossos políticos são descaradamentementirosos. Só que ninguém leva a mal porque já estamos habituados.Aliás, em Portugal é-se penalizado por falar verdade, mesmo que sejapor boas razões, o que significa que em Portugal não há boas razõespara falar verdade. Se eu, num ambiente formal, disser a uma pessoaque tem uma nódoa na camisa, ela irá levar a mal.Fica ofendida se eu digo isso é para a ajudar, para que possadisfarçar a nódoa e não fazer má figura. Mas ela fica zangada comigosó porque eu vi a nódoa, sabe que eu sei que tem a nódoa e porqueassumi perante ela que sei que tem a nódoa e que sei que ela sabe queeu sei.Nós, portugueses, adoramos viver enganados, iludidos e achamos normalque assim seja. Por exemplo, lemos revistas sociais e ficamosderretidos (não falo do cérebro, mas de um plano emocional) ao vermoscasais felicíssimos e com vidas de sonho.Pronto, sabemos que aquilo é tudo mentira, que muitos delesdivorciam-se ao fim de três meses e que outros vivem um alcoolismodisfarçado. Mas adoramos fingir que aquilo é tudo verdade.Somos pobres, mas vivemos como os alemães e os franceses. Somosignorantes e culturalmente miseráveis, mas somos doutores eengenheiros. Fazemos malabarismos e contorcionismos financeiros, masvamos passar férias a Fortaleza. Fazemos estádios caríssimos para doisou três jogos em 15 dias, temos auto-estradas modernas e europeias,mas para ver passar, a seu lado, entulho, lixo, mato por limpar,eucaliptos, floresta queimada, barracões com chapas de zinco, casashorríveis e fábricas desactivadas.Portugal mente compulsivamente. Mente perante si próprio e menteperante o mundo.Claro que não é um professor que falta à vigilância de um exame porficar preso no elevador que precisa de um atestado médico. É Portugalque precisa, antes que comece a vomitar sobre si próprio.

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